Paulo disse em Rm 14:5 que todos os dias são iguais?

Todos os dias sao iguais

‘Exegese’ é palavra bem conhecida dos estudiosos sérios da Bíblia. Significa extrair do texto o que o autor realmente quis dizer, como o prefixo grego “ex” indica, no sentido de “de dentro para fora”. Já ‘eisegese’ indica algo contrário—introduzir no texto algo de fora do mesmo, alheio ao sentido óbvio do que o autor está dizendo. Daí o prefixo grego ‘eis’, com o sentido “de fora para dentro”.

Se há um exemplo de ‘eisegese’ em argumentações sobre a Bíblia é o que eu chamo de ‘diaqualquerismo’—a noção de que qualquer dia sirva para se dedicar a Deus, à escolha do freguês, com textos tais como Rom. 14:5, 6; Gál. 4:9 e 10 e Col. 2:14-16 citados à guisa de provas de que em certo período da história cristã, os crentes decidiram, mesmo sem autorização divina clara, escolher o domingo como o “dia do Senhor”, algo que se teria dado “sem querer, querendo. . .” para lembrar a frase do engraçado personagem Chaves da série de TV mexicana transmitida no Brasil por alguns anos. 

Bem, analisemos a questão da primeira das passagens indicadas em 7 parágrafos enumerados:

7 ARGUMENTOS


1 - O problema no “diaqualquerismo” reside não só numa falsa exegese de tais textos, mas na própria concepção de “dia do Senhor”, que segundo as Escrituras, deve ser definido PELO SENHOR, não por cada um à sua livre escolha. 

Em Êxo. 20:11 lemos como o próprio Deus justifica o dia que Ele escolheu para ser-Lhe dedicado:

“PORQUE em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; POR ISSO o Senhor abençoou o dia do sábado, e o santificou”. 

Há no texto um claro “porque” e um “por isso” que não deixa margem a dúvida de que há um propósito bem específico para ser o sétimo dia o da escolha divina na determinação do Seu dia. 

Se cada um tem o direito de escolher o dia a dedicar ao Senhor de sua preferência, conveniência ou por mero seguir a maioria segundo alguma tradição de origem claramente humana, então a designação “dia do Senhor” perde o sentido, daí passando a ser o dia de cada um—meu, seu, dele, dela, nosso. 

Em termos cívicos, imaginemos alguma entidade brasileira que decida celebrar a Independência do Brasil em 8 de outubro, 9 de novembro ou 10 de dezembro. Não pode! Tem que ser o 7 de setembro, por quê?!

2 - Mas o que Paulo quer realmente dizer em Rom. 14:5, 6? Está ele refletindo uma nova mentalidade entre os cristãos primitivos sobre um suposto direito de escolher o “dia do Senhor” da preferência individual?

O que se faz muito importante no estudo das Escrituras é saber situar contextualmente os fatos narrados ou discussões levantadas. E também é importante analisar se o texto se refere a algo particular, restrito no tempo e espaço, ou a alguma regra de caráter universal. 

Estaria Paulo em Rom. 14:5, 6 tratando de algo que teria caráter universal? Por falta desse entendimento é que temos denominações cristãs que exigem que as mulheres usem véu sobre a cabeça no ambiente de culto, não tenham permissão de falar em público se houver presença de homens, e que todos pratiquem o ‘ósculo santo’.

3 - Analisemos, então, o sentido real de Rom. 14:5 e 6 numa exegese precisa, primeiro reproduzindo dita passagem:

“Um faz diferença entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente convicto em sua própria mente. Aquele que faz caso do dia, para o Senhor o faz. E quem come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus”.

O contexto histórico não autoriza qualquer noção de que fosse tão simples determinar que cada um escolhesse um dia de sua preferência para dedicar a Deus. 

A composição étnica da igreja primitiva era, sobretudo, formada por judeus “zelosos da lei” (Atos 21:20), e se houvesse qualquer iniciativa de se mudarem tradições e práticas arraigadas do judaísmo, isso causaria grandes debates e polêmica. 

É o caso da circuncisão, prática tão arraigada para os judeus, mesmo quando tornados cristãos. Quando Paulo e outros autores bíblicos tratam da inutilidade de tal prática, sabe-se muito bem pela leitura de Atos e epístolas como isso causou celeumas e discordâncias.

Se houvesse, então, naquele contexto histórico, qualquer atitude que resultasse na eliminação, alteração em qualquer sentido do sábado, seja em sua substituição pelo domingo ou qualquer outro dia, isso provocaria muitos comentários contrários e grandes polêmicas. Mas não se percebe nada disso em registro nas Escrituras ou na história do cristianismo primitivo. 

4 – Um documento arqueológico importante comprova que os membros da Igreja-mãe de Jerusalém, fugidos da condenada cidade, fixaram-se ao norte da antiga capital judaica num local chamado Pela. Ali eram conhecidos como “nazarenos”, e pelo ano 350 AD um historiador palestino chamado Epifânio, falou deles, e disse que tais cristãos tinham ainda costumes judaicos como A GUARDA DO SÁBADO DO SÉTIMO DIA. 

Logo, os componentes dessa Igreja-mãe AINDA observavam o sábado até meados do IV século. Claro, eles não foram influenciados pela Igreja que passou a dominar o cenário sobre a cristandade, após a destruição de Jerusalém. E essa Igreja era a da capital do Império—Roma, de onde deriva o costume de dedicar o antigo ‘dies solis’ do paganismo romano, transformado no domingo pela Igreja Católica Romana.

Como comenta o bloguista Waldecy A. Simões, “Quando e onde ACONTECEU A TRANSIÇÃO do sábado para o domingo? Ocorreu no sábado seguinte à ressurreição de Jesus, mesmo Ele tendo permanecido na Terra por mais 40 dias? Uma semana depois da subida de Jesus ao Reino de Deus Pai? Um mês depois? Um ano depois? 

Eu mesmo respondo: NUNCA!!! Nunca houve transição alguma, pois se a História da Igreja registra que os cristãos guardavam o sábado ATÉ NO ANO 364 depois de Cristo, onde aconteceu o Concílio de Laodiceia, que finalmente— aí, sim—determinou a abolição do sábado na Igreja a favor do domingo. Então segundo a total e indiscutível lógica evangélica, os cristãos continuaram a guardar e santificar os sábados, pelo menos até esse ano da proibição”.

5 - O que se dava em Roma é que Paulo busca manter a Igreja, formada por grande contingente de crentes de origem judaica, na mais perfeita paz, daí comenta sobre debates surgidos no ambiente cristão ali quanto a alimentos sacrificados a ídolos (e o termo grego usado é ‘broma’, que não se limita a carnes, mas a qualquer tipo de alimento, com o que se demonstra que ele não está a discutir as proibições quanto a carnes imundas) e dias especiais, como de jejum ou outras festividades. 

Se havia alguns crentes de origem judaica que queriam forçar outros a respeitarem certos dias que seriam especiais para os filhos de Israel (como a festa do Purim, que tinha mais caráter nacionalista), ou dias tradicionais dedicados ao jejum pelos judeus, tais crentes deviam ser respeitados em suas atitudes quanto a tais dias. Mas, por sua parte, não deviam querer impor tais dias como obrigatórios aos demais crentes de outras origens étnico-culturais.

6 - Isso é respaldado plenamente por eruditos do maior respeito na comunidade cristã. Vejamos alguns exemplos:

Para iniciar, Albert Barnes, erudito presbiteriano explica que o termo “iguais” não consta do original “e pode transmitir uma ideia que o apóstolo não teve planos de usar” [aí ocorrendo ‘eisegese’], o que é confirmado pelo comentário dos eruditos batistas Jamieson, Fausset e Brown onde é claramente dito: “The supplement ‘alike’ should be omitted, as injuring the sense” (O complemento ‘iguais’ deve ser omitido, pois prejudica o sentido”). 

Já o metodista Adam Clarke acrescenta que “iguais” não é reconhecido por qualquer manuscrito ou versão antiga. 

Barnes prossegue: “Significa [a passagem] que é uma questão de ‘indiferença’ se este dia é observado, ou se é dedicado a negócios comuns ou divertimentos? Esta é uma questão muito importante com respeito ao dia do Senhor. 

Que o apóstolo não tinha intenção de dizer ser uma questão irrelevante quanto a dever ser mantido santo, ou dedicado a negócios ou divertimentos, é claro”, por algumas considerações que ele alista, entre as quais:

* “A discussão dizia respeito somente a costumes especiais dos judeus quanto a ritos e práticas que eles tentariam impor aos gentios, e não a quaisquer questões que pudessem surgir entre os cristãos como cristãos. 

A indagação dizia respeito a alimentos, e observâncias festivais entre os judeus, e no que dizia respeito a seus escrúpulos quanto a participar de alimentos sacrificados a ídolos, etc. e não há mais propriedade em supor que o assunto do dia do Senhor seja introduzido aqui do que de ele introduzir princípios respeitantes a “batismo” ou “Santa Ceia”. . . .

* “É expressamente dito que aqueles que consideravam o dia, o consideravam não para Deus ou para honrar a Deus (Rom. 14:6). Eles o faziam como uma questão de respeito a Ele e suas instituições, para promover a Sua glória, e para fazer avançar o Seu reino. 

Teria sido isso jamais feito por aqueles que desconsideram o sábado cristão? Seria o seu desígnio jamais promover a Sua honra, e avançar o conhecimento Dele, por negligenciar o Seu santo dia? 

Quem não sabe que o sábado cristão nunca foi negligenciado ou profanado para qualquer desígnio de glorificar ao Senhor Jesus, ou promover o Seu reino? 

É [feito isso] para propósitos de negócios, ganho, guerra, divertimento, dissipação, conversa, crime. Seja o coração repleto de um sincero desejo de honrar o Senhor Jesus, e o sábado cristão será reverenciado e dedicado aos propósitos de piedade. 

E se qualquer homem se dispõe a recorrer a esta passagem como uma desculpa para violar o sábado e dedicá-lo ao prazer ou ganho, que o cite tal como está, ou seja, que negligencie o sábado a partir de um consciente desejo de honrar a Jesus Cristo. 

A menos que este seja o seu motivo, a passagem não pode valer-lhe de nada. Mas esse motivo nunca ainda influenciou um violador do sábado”.
O que ele quer dizer na última frase seria uma irônica declaração de alguém como—“eu não dedico dia nenhum ao Senhor, e faço isso ‘para o Senhor’”. . . Ou seja, estaria absurdamente honrando ao Senhor por não lhe dedicar dia nenhum. 

Adam Clarke também conclui não haver lógica em imaginar que “não haja distinção de dias, nem mesmo quanto ao sábado, e que cada cristão se ache na liberdade de ter esse dia como santo ou não, tal como seja persuadido em sua própria mente”. E prossegue: “Que o sábado é de contínua obrigação pode ser razoavelmente concluído de sua instituição (ver a nota sobre Gên. 2:3) e de sua referência típica”.

Em seguida ele lembra que todos reconhecem que o sábado é um tipo do descanso em glória, que resta ao povo de Deus. Daí lembra que os tipos permanecem em plena força “até que o antítipo, ou a coisa significada, tenha lugar”. 

Por seu turno, no seu comentário bíblico, o comentarista John Gill diz que a diferença entre os dois casos (do crente forte e do fraco) é que “o irmão fraco considerava um dia por causa do dia, como tendo, por uma lei positiva . . . uma superioridade sobre o outro, e considerava o culto em função desse dia; o irmão forte, conquanto também observasse um dia para o culto divino, que é o dia do Senhor—uma vez que deve haver algum tempo para ele, bem como um lugar—observava, porém, o dia em função da adoração, e não adorava por causa do dia”. 

E os batistas Jamieson, Fausset e Brown também se manifestam contestando alguém que defende ideia contrária: “Desta passagem sobre a observância de dias, Alford infelizmente infere que tal linguagem não poderia ter sido usada se a lei do sábado tivesse estado em vigor sob o Evangelho em qualquer forma. Certamente não poderia, se o sábado fosse meramente um dos dias festivos judaicos; mas não se pode tomar isso como assentado meramente porque era observado sob a economia mosaica. E, certamente, se o sábado fosse mais antigo do que o judaísmo; se, mesmo sob o judaísmo, ele era consagrado entre as eternas santidades do Decálogo, proferido, como nenhuma outra parte do judaísmo foi, em meio aos terrores do Sinai, e se o próprio Legislador disse disso na terra: ‘O Filho do homem é o Senhor, até mesmo do sábado’ (ver Mar.2: 28)—será difícil mostrar que o apóstolo deve estar dando a entender que seja classificado por seu leitores entre aqueles dias de festa judaicas desaparecidos, que só a ‘fraqueza’ poderia imaginar ainda estar em vigor—uma fraqueza que aqueles que tinham maior luz devem, por amor, apenas suportar”. – Comentários até aqui constantes do programa e-Sword, que pode ser encontrado no website, e-Sword.net.

E temos o dominguista Russel N. Champlin em seu comentário reconhece que não é possível provar que a guarda do sábado esteja sendo questionada em Rom. 14:5: 

“Não dispomos de meios para julgar, com base neste texto, nem com toda a certeza, se Paulo queria incluir ou não o sábado na lista dos vários dias especiais que os irmãos ‘débeis na fé’ insistiam em observar”. (Champlin, Russel Norman. “O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo”, vol. 3, p. 839. Citado por Alberto Ronald Timm em “O Sábado nas Escrituras”, p. 69).

7 – Finalmente, ressalte-se que nos documentos protestantes/evangélicos históricos, como a Confissão de Fé de Westminster, Confissão Batista de 1689, Catecismo Batista, organizado por Spurgeon em 1855, os textos bíblicos enumerados como respaldo para o arrazoado quanto ao “dia do Senhor” não incluem qualquer das passagens indicadas ao início deste estudo, e sim os mesmos textos usados pelos adventistas para defesa do sábado como “dia do Senhor” (Gên. 2:2, 3; Êxo. 20:8-11; Isa. 58:13; Jer. 17:21, 22, 23), apenas com acréscimo de textos que tratam do “primeiro dia da semana”, numa tentativa de justificar a adoção do domingo em lugar do sábado. 

Não há qualquer noção indicada de que qualquer outro dia valha para determinar-se o “dia do Senhor” além daquele que celebraria a Ressurreição de Cristo no domingo.
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P.S.: É verdade que quando esses autores falam do sábado, eles automaticamente o reinterpretam para aplicá-lo ao domingo. Tanto que Albert Barnes fala especificamente de “sábado cristão”, pois tem o domingo como MANDAMENTO, não como mera sugestão.

FONTE: Artigo organizado pelo Prof. Azenilto Brito