A palavra hilastérion é muito importante por ser a chave para a compreensão da obra expiatória de Cristo.
Além de Romanos 3:25 é usada em apenas mais um texto do Novo Testamento, isto é, Heb. 9:5, onde é empregada para denominar o propiciatório do santuário hebraico. Neste passo o termo está empregado com propriedade, desde que hilastérion é usada na Septuaginta como tradução do hebraico καππορετη – propiciatório.
De acordo com Êxodo 25:17-22 devia ser posto sobre a arca do concerto um καππορετη – lâmina de ouro puro. De cima deste καππορετη Deus falaria com Moisés (v. 22). Sobre esta peça de ouro era espargido no Dia da Expiação ou kippurim o sangue dos sacrifícios.
Lutero traduziu καππορετη por "gnadenstuhl", correspondente ao inglês "mercy seat", que seria para nós "lugar de misericórdia", Tyndale traduziu hilastérion como lugar de expiação.
Para os Setenta, hilastérion não era apenas uma cobertura para a arca, mas indicava mais o meio e o lugar de expiação.
O propiciatório era o local da expiação, pois ali Deus se encontrava com os homens para remissão do pecado. De modo idêntico, por meio de Cristo – o grande mediador entre Deus e os homens – há uma mediação com Deus. Paulo nos afiança que é através dele que temos acesso a Deus (Efés. 2:18).
Os dois problemas fundamentais com o termo hilastérion de Rom. 3:25 seriam estes:
1º) O que significa exatamente esta palavra em grego?
2º) Que termo em nossa língua o traduziria com mais propriedade?
É um adjetivo neutro substantivado, usado por Paulo como meio expiatório.
Os dicionários são omissos na apresentação do significado etimológico da palavra, apenas definindo-a como: aquilo que expia ou propicia, um meio de expiação, dádiva para conseguir expiação. Etimologicamente expiar é tirar, enquanto propiciar é cobrir, por isso as duas palavras podem ser empregadas adequadamente para o sacrifício de Cristo em favor do homem.
Não há em nossa língua nenhuma palavra que transmita toda a significação original. Tem sido traduzido por: propiciatório, propiciação, expiação, sacrifício propiciador, sacrifício expiatório. Seja qual for o seu significado, o certo é que a palavra indica algo que expia pecados. Ela nos revela a "apolitrosis", ou a redenção do pecador e com isso a revelação da justiça divina.
O comentário seguinte do Professor assistente na Andrews, Edward W. H. Wick, no livro – Let Me Assure You, pág. 23 satisfaz as nossas dúvidas quanto a um aspecto da melhor tradução:
"A idéia de propiciação (assim traduzida na K.J.V,) é uma idéia pagã. Ela expressa idéia de que Deus está irado e portanto deve ser aplacado. Isto é propiciação e eis porque a palavra não é realmente cristã. Deus iniciou o plano da salvação, a expiação. Ele não necessita ser persuadido a perdoar o pecado do homem através de qualquer sacrifício que este possa oferecer. Deus mesmo agiu em Jesus Cristo, de sorte que não é Deus que precisa ser apaziguado com referência ao pecado por um sacrifício, de modo semelhante àquele oferecido às divindades pagãs. Deus não precisa ser aplacado."
Os parágrafos seguintes da publicação The Bible Translator, outubro de 1953, págs. 160-161 nos são úteis para melhor compreensão de hilastérion:
"É particularmente importante compreender as palavras do Novo Testamento para expiação, sacrifício, perdão, propiciação e reconciliação, não em seu sentido grego pagão, mas no sentido em que foram usadas na Septuaginta para traduzir as correspondentes palavras hebraicas. Tomemos por exemplo o verbo hilaskomai (propiciar) e palavras cognatas. No uso grego pagão hilaskomai denota o apaziguamento da ira de um caprichoso poder, oferecendo-lhe um dom ou aturando-lhe a vingança ou a adoção de qualquer outro expediente. Mas na Septuaginta ele é usado como o equivalente do notável termo hebraico κιππερ, a palavra usada no Velho Testamento para designar o cancelamento do pecado, por um gracioso e justo Deus do concerto, quando o penitente adorador reconhecia o seu delito. Outras palavras derivadas da mesma raiz no Velho Testamento hebraico, que pertencem ao mesmo contexto do καππορετη = propiciatório, o lugar onde o pecado é apagado; κιππυριμ = expiação (como em ψομ κιππυριμ, o dia da expiação) e κοπηερ = resgate. Na Septuaginta κιππερ é traduzida por hilaskomai ou sua forma intensiva exilaskomai (traduzida por purgar, purificar, reconciliar, fazer expiação); καππορετη por hilastérion; κιππυριμ por hilasmos ou o intensivo exilasmos. Deste modo estas palavras gregas tomam o significado de suas equivalentes hebraicas ao invés do significado que tinham no paganismo grego; e transmitem o sentido de realizar um ato por meio do qual é removida a culpa ou contaminação".
Todas estas palavras se relacionam com a palavra hebraica básica "καπηερ", que significa cobrir ou ocultar, sendo uma cobertura para o pecado. Em outras palavras, seria a eliminação do pecado que está impedindo a comunicação entre o homem e Deus. Muitos eruditos não concordam com a idéia de cobrir ou ocultar o pecado, porém, deve-se ter em mente que a palavra está empregada no sentido figurado de perdoar, esquecer, expiar, purificar.
Talvez ninguém, com mais propriedade do que Vincent, captou as idéias Vétero e Neotestamentárias do verdadeiro significado da expiação. Atente bem para suas judiciosas palavras ao comentar Rom. 3:25 :
"Assim como a superfície de ouro cobria as tábuas da lei, assim também Jesus Cristo está por sobre a lei, vindicando-a como santa, justa e boa, e assim, igualmente, vindicando as reivindicações divinas que nos exigem obediência e santidade. E assim como o sangue era anualmente aspergido sobre a tampa de ouro, pelo sumo sacerdote, assim também Cristo é exigido 'em seu sangue' não vertido para aplacar a ira de Deus, para satisfazer a justiça de Deus ou para compensar pela desobediência humana, mas sim, como a mais elevada expressão do amor divino pelo homem, tendo participado, junto com a humanidade, até a morte a fim de que pudesse haver reconciliação do homem com Deus, mediante a fé e a rendição a Deus".
"No Velho Testamento a idéia de sacrifício como uma propiciação retrocede ante o caráter pessoal que está por trás do sacrifício, e que unicamente dá-lhe virtude. Veja 1 Sam. 15:22; Sal. 40:6-10; 50:8-14; 51:16-17; Isa. 1:11-18; Jer. 7:21-23; Amós 5:21-24; Miq. 6:6-8. O Novo Testamento enfatiza o retrocesso, colocando a ênfase sobre o efeito purificador e vitalizante do sacrifício de Cristo, Veja João 1:29; Col. 1:20-22; Heb. 9:14; 10:19-21; I Pedro 2:24; 1 João1:7; 4:10-13".
"O verdadeiro significado do oferecimento de Cristo concentra-se, portanto, não sobre a justiça divina, mas sobre o caráter humano; não sobre a remissão da penalidade através de uma transformação moral; não sobre a satisfação da justiça divina, mas sobre o ato de trazer o homem alienado em harmonia cem Deus". – Word Studies in the New Testament, Vol. III, págs. 43-45.
Em seguida são encontradas as declarações dos estudiosos adventistas sobre esta importante palavra:
"Esta é a interpretação aceita e defendida pela maioria dos eruditos da Bíblia."
"Em Rom. 3:25, hilastérion é usada em conexão com Cristo. A tradução dos versos 24 e 25 é: 'Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para hilastérion pela fé no seu sangue.' Como deve ser isto traduzido? A forma da palavra requer lugar. Uma pessoa, Jesus Cristo, deve ser incluída. Está envolvido um sacrifício, como demonstrado pela referência ao sangue de Cristo. Sua morte é significativa. Se o sacrifício deve ser enfatizado, alguém pode dizer: oferta de propiciação, Se a Pessoa é enfatizada então Propiciador é uma melhor sugestão. Se o ato da Pessoa como um sacrifício é básico, então propiciação é o termo adequado. Se o lugar é mais importante, propiciatório é mais conveniente".
"Tão certo como a tampa da arca do concerto era o lugar, e, típica e espiritualmente, o meio de expiação dos pecados humanos por Deus, assim Cristo é simultaneamente a Pessoa, o Meio e o Lugar da expiação. Isto é expresso no hilastérion de Rom. 3:25. A tradução de Revised Standard Version 'como uma expiação" é aceita como válida pelos estudiosos". – The Problems in Bible Translation, págs. 215 e 216.
Alguns estudiosos afirmam que Cristo não pode ser apresentado como propiciatório, alegando razões que não são conclusivas.
Outros crêem que Cristo é um símbolo do propiciatório pelo seguinte:
1º) O termo está em conformidade com a tipologia do Velho Testamento, onde Cristo aparece como a nossa páscoa.
2º) Paulo faz uso da palavra hilastérion no sentido mais geral de sacrifício em propiciação oferecido a Deus para anular os pecados e os seus daninhos efeitos.
3º) Nesta interpretação frisa-se uma excelente idéia contrastante; o propiciatório jazia oculto entre cortinas; em centraste Deus propôs – "προτιτηεμι" (expor publicamente para que todos vejam) a Cristo, em seu caráter, como o verdadeiro propiciatório que faz intercessão entre nós e Deus.
Como o propiciatório era o lugar onde o perdão, a expiação era efetuada, assim o lugar cristão de expiação é a cruz. Jesus significa para o mundo o que o propiciatório significava para o povo de Israel. Em Cristo a expiação foi realizada no Calvário, justamente como no Dia da Expiação, a expiação era efetuada no lugar santíssimo. Na cruz Deus demonstra Sua misericórdia, e isto torna o lugar de expiação o lugar onde os pecados são perdoados.
Na Septuaginta a palavra é empregada como "meio de expiação", sendo este meio Cristo, aparecendo o homem como o necessitante e Deus como o agente.
Hilastérion tem o significado básico de propiciar, C. H. Dodd diz que hilastérion é expiação.
As citações que se seguem do Espírito de Profecia são relevantes, oportunas e esclarecedoras deste tema tão sublime – a obra expiatória de Cristo.
"Visto que a lei divina é tão sagrada como o próprio Deus, unicamente um ser igual a Deus poderia fazer expiação por sua transgressão. Ninguém a não ser Cristo, poderia redimir da maldição da lei o homem decaído, e levá-lo novamente à harmonia com o Céu. Cristo tomaria sobre Si a culpa e a ignomínia do pecado – pecado tão ofensivo para um Deus santo que deveria separar entre Si o Pai e o Filho. Cristo atingiria as profundidades da miséria para libertar a raça que fora arruinada". – Patriarcas e Profetas, pág. 63.
"Cristo se deu a Si mesmo como sacrifício expiatório, para a salvação de um mundo perdido". – Testimonies, Vol. 8, pág.
"Cristo plantou a Cruz entre o Céu e a Terra, e quando o Pai contemplou o Sacrifício de Seu Filho, curvou-Se ante ele em reconhecimento de sua perfeição, 'É o suficiente disse Ele, a expiação está completa'." – Review and Herald, 24 de setembro de 1901.
Conclusão
Quero terminar e sumariar cem o que declarou Edward W. H. Wick no livro já citado, pág. 24:
"A fim de descobrir o que Paulo quer dizer em Romanos ao afirmar que Jesus é a propiciação, devemos ir a outro lugar no Novo Testamento onde a palavra é empregada, e este é em Hebreus, na descrição do santuário. Ali a palavra é usada para a tampa da arca, o lugar entre os querubins. Ali o sangue era aspergido no Dia da Expiação. Em outras palavras, havia o lugar onde a expiação era feita em prol dos israelitas. Assim, de acordo com Romanos, se Jesus é nosso hilastérion, Ele é o lugar onde, ou o meio pelo qual nossa expiação é feita.
"Expiação significa o perdão dos pecados, o cancelamento dos mesmos. Assim Jesus é o meio da expiação, a maneira pela qual os pecados são cobertos. Propiciação significa o desvio da ira, a expiação significa o apagamento do pecado. O sacrifício é o meio pelo qual a expiação é feita. O sacrifício de Jesus é a maneira pela qual os pecados são perdoados".