A realidade como ela é
Negar os fatos nem sempre traz benefícios. É preciso desenvolver a capacidade de aceitação e adaptação.
Dentre os mecanismos de defesa usados por uma pessoa a fim de se proteger das ameaças contra sua integridade está a negação. É um fenômeno considerado universal diante das notícias catastróficas: “Não acredito!”, “não é verdade!”, “não é possível!”; são expressões que traduzem a maneira como uma pessoa reage diante daquilo que não lhe interessa, não gosta ou lhe fere.
Muitas vezes, é uma reação passageira. Seu equilíbrio é perturbado, ela balança, mas consegue se recompor. Com a recuperação, a pessoa volta à realidade e pode tomar atitudes mais positivas para o enfrentamento de situações constrangedoras.
Lado positivo
Antes de focalizar o lado negativo do mecanismo de negação, é preciso compreender que ela pode ser adequada a uma pessoa adulta, quando esta é surpreendida com uma notícia desagradável como, por exemplo, um acidente fatal; uma morte repentina; um escândalo vergonhoso protagonizado por um amigo; um gesto de traição impensável, patrocinado por alguém tido como digno de total confiança; ou a confirmação de uma doença terminal.
A dor é tão profunda que não passamos a agir como se entendêssemos a realidade, ou como se o fato não tivesse acontecido.
É uma negação que nos ajuda a fingir que a vida continua normalmente. Ela pode chegar até a ser útil, como no caso de facilitar a sobrevida e pessoas infartadas, ou de ajudar o velho a se adaptar, com humor, ao processo de envelhecimento e ao aparecimento de doenças crônicas incapacitantes.
A negação protege o choque inicial, funcionando como um amortecedor natural e espontâneo para as surpresas dolorosas da vida. É uma resposta imediata de adaptação e ajustamento diante de surpresas que abalam as convicções e a própria vida. Ela se mostra nas perguntas “por que eu?”; “por que agora?”, “por que ele ou ela?”
A negação pode ser normal em uma criança enquanto ela está na fase do pensamento mágico, que vai até os oito anos de idade. Ela acredita que se um adulto finge que a coisa não existe, a coisa não existe mesmo e pronto. Seria bom se essa crença fosse verdade, mas não é bem assim.
A atitude de negação faz parte da sociedade e da época em que se vive. Ela se faz representar com maior ou menor intensidade nas várias ideologias defendidas pelos políticos, nas seitas e credos religiosos adotados, nos sistemas e teorias educacionais aplicados, nas práticas e condutas médicas empregadas e nas teorias psicoterápicas.
Cada segmento afirmando e defendendo as suas verdades e preferências, e, ao mesmo tempo, negando e condenando as verdades preferenciais do outro.
A negação encontra-se presente até diante das grandes descobertas científicas que revolucionaram o mundo, porque chocaram as chamadas verdades estabelecidas.
A História está cheia de exemplos de homens que foram sacrificados porque a ignorância e a presunção dos detentores do poder negaram as evidências dos fatos, mesmo que estes fossem comprovados por estudos científicos, qualquer que fosse a área pesquisada. Basta lembrar de Galileu.
De qualquer forma, a negação não apenas pode ser adequada temporariamente, mas é, também, um direito da pessoa, que precisa ser respeitado, pois sem esse direito ela não pode conseguir sobreviver a uma notícia catastrófica para a sua integridade mental. A negação se torna, para ela, o único meio disponível para continuar vivendo com a dor dentro dos contornos de suportabilidade.
Em suma, a negação pode ser normal para a criança, para o adulto em determinadas circunstâncias especiais, e, até certo ponto, para a sociedade. Para a ciência, momentaneamente.
Lado prejudicial
Se a negação for transformada em um mecanismo permanente de enfrentamento dos problemas comuns da vida e de resolução de conflitos, ela será normal e doentia.
Isso porque a própria resposta de adaptação e ajustamento se torna problema, e o desajustamento vai gerar dificuldades que afetarão toda a vida da pessoa, através das suas respostas em forma de padrões de comportamento condicionados para a autodestruição. Sob tais condições, a negação impossibilita a busca de auxílio, de segurança e de estabilidade emocional.
O mecanismo de adaptação se torna um mecanismo inconsciente de defesa contra a ansiedade, o medo, a perda, o luto e a crueldade que o mundo nos obriga a enfrentar. A pessoa age frente aos fatos como se eles não existissem, mesmo não tendo feito uma escolha deliberada e consciente de não percebê-los.
De fato, a negação anormal, como mecanismo inconsciente de defesa, é indício de imaturidade para lidar com as ameaças que surgem no processo de enfrentamento das circunstâncias da vida. É um tipo de imaturidade que dificulta a solução dos problemas de adaptação à vida.
Basta trazer à memória exemplos de indivíduos alcoólatras negando a ingestão excessiva do álcool; de pessoas obesas negando a impropriedade de seus hábitos alimentares; de drogados jurando que o tipo de drogas que eles usam não causa dependência nem mal algum à saúde; jogadores inveterados, perdedores contumazes, insistindo que o dinheiro perdido será recuperado da próxima vez; ou de pessoas viciadas na leitura de revistas pornográficas afirmando que esse hábito é apenas uma apreciação estética.
Quando a pessoa entra pelo mundo fácil da negação, descobre que encontrou uma amiga que se transformou em pior das inimigas, buscando a sua destruição. É fácil no começo, e muito difícil do meio para o fim.
A negação chega ao ponto máximo de extremismo quando o indivíduo entra em estado de psicose negando a existência da realidade como no caso do esquizofrênico. O tempo, o esforço, a identidade, tudo se perde no vazio do nada. É uma segurança insegura, uma proteção desprotegida, uma fortaleza sem forças, uma insensibilidade sensível, um controle descontrolado.
Evidentemente, a negação foi desenvolvida para proteger a pessoa da raiva, do medo, da culpa, da vergonha insuportável por características pessoais que o indivíduo não quer admitir em si mesmo.
Quando a pessoa utiliza o mecanismo de negação, sempre vão aparecer desculpas, justificativas, explicações, racionalizações, projeções. É uma verdadeira cadeia de palavras para provar o improvável. E isso é perda de tempo, esforço, energia. Seria muito mais fácil e econômico aceitar a realidade com honestidade.
Muitas vezes, a negação chega a um ponto de tamanha desproporção que os fatos não são admitidos. Ainda é possível encontrar pessoas que negam a existência da Aids. Outros afirmam que a Inquisição foi uma propaganda reformista.
É impressionante como uma pessoa nega o defeito de outra para a qual se acha atraído, somente para depois se deparar com duas ou mais vidas arruinadas. Nega-se, também, os próprios defeitos apenas para mostrar aquilo que em verdade não é. A negação das dicas negativas no outro é um esforço para se provar que se fez a escolha certa. Isso pode custar um preço acima do que podemos pagar. Ter olhos e agir como cego pode trazer conseqüências funestas.
Quando a pessoa nega ou bloqueia de sua consciência pensamentos, sentimentos e realidades desconfortáveis sobre si mesma, ela está enveredando por um estilo de vida de fuga dos conflitos inerentes à multiplicidade de estímulos que lhes atinge. Está se abrindo para uma vida de vícios, de isolamento emocional, de afastamento social.
Negar o que sente, pensa, deseja e quer é não admitir uma parte de si mesmo. Por mais negativo que seja o sentimento, por mais agressivo que seja o pensamento, por mais impróprio que seja o desejo, por mais inalcançável que seja, o fato é que tudo isso faz parte do indivíduo. Ao negar, e com o passar do tempo, a pessoa pode acabar negando-se como ser humano, como gente.
É muito comum alguém negar-se para ser amado. Mas o ato de negar uma parte de si mesmo, para receber a aceitação do outro torna a pessoa um nada. Por isso, ela não pode ser amada. Encontrei, certo dia, uma senhora que me disse: “Eu sou nada como pessoa. Eu sou um nada como mulher.
Eu sou um nada como mãe. Eu sou um nada como profissional. Eu sou um nada como gente. Eu sou um nada!” Quando a pessoa vai se negando, corre mesmo o risco de se tornar um nada.
Aceitação e adaptação
É triste uma pessoa negar o que pensa, sente, percebe. É triste ver alguém negando a realidade porque ela se apresenta chocante e dolorosa. É triste a pessoa negar o sucesso, os talentos, a satisfação, a alegria.
É triste ver um indivíduo negar o fracasso, o erro, os defeitos, a tristeza ou a dor. A parte sentimental não se evapora com a negação. O querer que as coisas não sejam como são não as transforma no que se quer. Quem deve se adaptar à realidade acima de suas forças é a pessoa. A pessoa se adapta, a realidade não.
A realidade pode ser traumática, catastrófica, inesperada, ingrata, injusta, mas é a realidade. É preciso aceitá-la para se conviver com ela.
Quer seja uma gravidez inesperada, a perda do emprego, o abandono pelo cônjuge, a morte de um filho, a descoberta de uma doença terminal, ou um defeito físico, não importa. O importante é ver, perceber, sentir e pensar. Aceitar.
Se for preciso chorar, gritar, falar com alguém, faça isso. É uma indicação da aceitação da ferida, da dor ou da ingratidão sofrida. É uma sintonia consigo mesmo. É um contato com o próprio ser.
Procure não aceitar a proteção advinda da negação da ansiedade provocada por contradições, conflitos, fracassos e inadequações. É proteção cujos custos irão além de sua capacidade de pagar.
Encarar a informação com a maior objetividade e honestidade é abrir as portas para uma vida madura, justa e feliz. Ainda que as informações percebidas machuquem o nosso coração. É o caminho da saúde física e mental. A sanidade mental se fundamenta em um contato permanente com a matéria bruta percebida.