O que viria fazer Satã na aurora de um milênio ainda todo impregnado das belas promessas do iluminismo? Os progressos da civilização garantidos pela ciência e pela técnica, a razão finalmente vitoriosa sobre a superstição, a liberdade de espírito emancipada das autoridades clericais.
O Diabo não desapareceu de nossas crenças a ponto de a maior parte dos próprios cristãos ver nele simplesmente uma metáfora para designar o “lado obscuro” do ser humano? Ainda no início do século 18, os católicos, recitando o Pai Nosso, suplicavam a Deus livrá-los do Demônio. Pelo menos era assim que eles se exprimiam.
A fórmula da famosa prece desapareceu de maneira significativa. Ela foi transformada, por assim dizer humanizada, como se paralelamente à secularização do divino, a do demônio também se desenvolvesse; a partir de então, o fiel moderno não pede mais a seu Deus senão para livra-lo do “mal”.
Enfim, o desencantamento do mundo seria tão perfeito que a figura do Demônio passa a ser eclipsada para sempre de nossos horizontes de pensamento? Provavelmente não.
Como lembra Robert Muchembled em sua recentíssima Une Histoire du Diable (Seuil, 404 páginas, 104 francos), a Igreja Católica, inteiramente em luta contra os cristãos “modernistas”, mantém o dogma com firmeza: o Diabo possui uma existência bem real.
Apesar dos teólogos ganhos pela psicanálise, o adversário não é um símbolo para interpretar, uma entidade psíquica produzida por nosso inconsciente, mas de fato uma pessoa real, o príncipe dos demônios, se não em carne e osso, uma vez que se trata de um espírito, pelo menos suficientemente poderoso para se encarnar no corpo de um humano e se apossar dele.
Pelo menos, é isso que lembra um documento do Vaticano, publicado em 1975, com o título Fé Cristã e Demonologia. Nele se encontra, sobretudo, o que o próprio Paulo VI enfatizou em um discurso feito no dia 15 de novembro de 1972: “Todo aquele que não admite a existência do demônio ou a considera como um fenômeno independente, que não tem, ao contrário de toda criatura, Deus por origem, ou então a define como uma pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das origens desconhecidas de nossas doenças, transgride o ensinamento bíblico e eclesiástico...”
Ainda mais próximo de nós, João Paulo II retoma naturalmente o famoso tema de Baudelaire de acordo com o qual “o mais belo estratagema do Diabo seria de nos persuadir que ele não existe”. Neste sentido, ele se dedica a denunciar a tática do Demônio que “consiste em não se revelar a fim de que o mal que ele inculca desde o começo se desenvolva no próprio homem, nos próprios sistemas e nas relações inter-humanas entre as classes sociais e as nações”.
E o catecismo da Igreja Católica, que se produz sob sua autoridade e fornece a mensagem oficial, evita qualquer ambigüidade sobre o assunto: no Pai Nosso, o mal não é entendido como “uma abstração, mas designa uma pessoa, Satã, o Demônio, o anjo que se opõe a Deus”.
Nessa perspectiva, a prática do exorcismo, por mais arcaica que possa parecer, nada tem de supérflua. Como lembra ainda Robert Muchembled, o padre dom Amorth, o exorcista da diocese de Roma, afirma ter curado nada menos de 84 autênticos casos de posse demoníaca.
Portanto, não é de se espantar se, desde janeiro de 1999, o número de exorcistas franceses oficialmente determinados, pela Igreja, para essa tarefa tenha passado, segundo Muchembled, simplesmente, de 15 a 120!Bizarrice característica de uma confissão católica, reabilitada pelo dogmatismo?
Ainda neste caso, nosso autor nos convida à prudência, enfatizando como o fenômeno infiltra toda a sociedade e atravessa inclusive as classes sociais: não só as seitas satânicas prosperam ao mesmo tempo que os filmes ou os livros de ficção científica dedicados ao adversário, mas a França de hoje conta, sem dúvida, com mais de 400 mil visionários, aos quais se somam 30 mil feiticeiros ou curandeiros de quem uma boa parte do trabalho consiste em lutar conta as forças maléficas... O que pensar disso?
Efetivamente, apesar das aparências e dos esforços do papa, o adversário desceu à terra e se instalou no coração do próprio ser humano. As cifras a que nos referimos acima seriam, assim, simplesmente uma última chama diabólica, um epifenômeno em relação à violenta onda de laicização do mundo.
A humanização do divino, a interiorização dos conteúdos religiosos pelo espírito humano foi também, muito além dos sinais superficiais de resistência, uma interiorização do Demônio.
Luc Ferry, Le Point